Apresentação: O presente trecho de diário de campo tenta mostrar como o Arroio Dilúvio desperta uma variedade de opiniões, sentimentos e imagens vinculados a aspectos singulares das lembranças do sujeito devaneante – neste caso a aprendiz de etnográfa.
Fundo de Origem: BIEV/NUPECS/LAS/PPGAS
Fonte: Coleção do Projeto Habitantes do Arroio
Autor: Renata Ribeiro (Bolsista ITI)
Local: Porto Alegre/RS
Data: 26 de Agosto de 2009
Tags: Os Interiores da Escrita Etnográfica
Percorrendo o Arroio Dilúvio: viagem da Av. Ipiranga ao morro da CEEE, em busca da interioridade.
Enquanto atravessava a rua que separa o mercado público da prefeitura municipal de Porto Alegre, avistei de longe a minha condução, ainda parada no terminal. Saí correndo para conseguir alcançá-la antes que a pequena fila de pessoas terminasse e o ônibus fosse embora, em direção ao “meu morro”; deixando-me para trás. No meio do caminho meus tênis se desamarraram, mas mesmo assim continuei correndo. Pela minha cabeça passou: “eu deveria ter vindo de botas”. Já bastante próxima ao terminal; porém não mais correndo e sim dando passos largos, ofegante, devido ao meu sedentarismo, levantei minha cabeça, olhei para frente e percebi que já era tarde demais – o ônibus naquele momento passava por mim. Olhei para o motorista com um olhar de decepção: “poderia ter me esperado”. Chegando ao terminal, parei na sombra para descansar – minha respiração estava difícil e o calor me causava desconforto devido àquela correria desnecessária e exaustiva.
Em seguida formou-se uma fila atrás de mim e outro ônibus logo chegou. O motorista e a cobradora cumprimentaram-me sorrindo, naquele momento o meu dia se modificou. A saudação bem-humorada destes desconhecidos, fez com que eu repensasse a minha manhã, que havia começado um pouco desastrosa, fazendo com que o resto do dia se tornasse mais agradável e prazeroso. Dentro do ônibus sentei-me, coloquei meu material ao lado, desvencilhei-me dos casacos desnecessários, colocando-os dentro de minha bolsa. O ônibus saiu do terminal, desta vez, sem me deixar para trás. Em seguida aquele gigantesco transporte coletivo, conhecido em minha cidade como “ônibus minhocão”, entrou na Av. Ipiranga, que ocupa a maior parte do trajeto desta linha, a D43.
Das janelas, eu e outros passageiros observávamos, durante o trajeto, o Arroio Dilúvio, que corta toda esta enorme avenida. Uma água escurecida, muita espuma e um pouco de lixo palpável era talvez a única paisagem percebida pela maioria das pessoas. Todavia, observando de forma mais crítica, era possível ter uma percepção mais diferenciada daquela realidade, que a priori é constituída por um forte trânsito de automóveis, muito barulho e uma poluição que desagrada os olhos de quem tenta apreciar a paisagem. Sobre a água poluída, pássaros voando, planando, subindo nas árvores e comendo animais, talvez até mesmo lixo. Uma faraônica obra de engenharia e grandes árvores – com raízes tão grandes, que acabaram destruindo pequenas partes desta construção. Nas margens do arroio, a Dialética do capitalismo, da globalização, pessoas de classe média correndo, outras caminhando, algumas acompanhadas, outras simplesmente se exercitando. Nestas mesmas margens, moradores de rua, alguns sentados, outros dormindo e não somente isso, meninos malabaristas, de aproximadamente 10 anos, esperando o sinal fechar. Trabalhadores atravessando de uma margem a outra através das passarelas, algumas mais bens estruturadas, por estarem em frente a estabelecimentos importantes, outras em locais “sem nenhuma importância”, bem mais simples, estreitas e de madeira. Todavia, ambas com a mesma função, possibilitar a passagem de indivíduos que diariamente precisam atravessar a Av. Ipiranga e por conseqüência o Arroio Dilúvio.
Ao observar esta realidade pela janela do ônibus, lembrei-me da época em que eu morava naquela avenida. Recordei-me de que, quando a água do arroio se encontrava baixa, algumas pessoas não usavam a passarela para atravessarem o arroio, mas sim os degraus de queda d’água feitos para baixar o nível da água e arejá-la, fazendo com que as bactérias que ali se encontram, passem a absorver a matéria orgânica, tornando a água um pouco mais limpa. O “ônibus minhocão” entrou na Avenida Bento Gonçalves e eu e os outros passageiros perdemos de vista o Arroio Dilúvio. “Será que eles sabem que o arroio e a Avenida Ipiranga continuam o seu trajeto, paralelamente à Av. Bento Gonçalves; porém ocultos e talvez propositalmente esquecidos por Porto Alegre?”- perguntei-me. Dei o sinal, desci do ônibus, olhei para a paisagem bastante diferente da Av. Ipiranga. Alguns morros e em meio a eles uma urbanização desgovernada, com casas em área de risco – algumas sobre pilares improvisados, para nivelar as residências que se encontram praticamente penduradas no morro.